[ESPECIAL] A Rua


Este texto é um marco na história desse humilde blog. Logo depois que postei a última viagem sobre o Midnight Oil, percebi que aquele foi o texto de número 500. Tal marca merecia uma pequena celebração, mas como só percebi após postá-la, resolvi deixar a celebração para a viagem número 501 - a que faremos agora. Em março desde ano, o blog completou 4 anos de atividade. Como eu não sei a data exata em que ele foi criado, prefiro deixar a marcação do tempo vir com o número de postagens que o Blogger me informa tão prontamente à cada vez que acesso o painel. Completar 501 textos, embora não seja nada extraordinário, é de se levar em conta quando observamos que eles tratam puramente do bom e velho Rock And Roll. Ok, exagero quando digo "puramente", afinal há uma meia dúzia de artistas comentados que não se enquadram exatamente nesse nicho, mas nem por isso são menos importantes que os demais, ao exemplo do mestre Jorge Ben, do brother Jack Johnson e do sábio Gabriel, o Pensador - para citar apenas três. É justamente por isso que esse texto, que introduz a segunda metade de mil, será tão significativo. Sempre que meus textos fogem do Rock - gênero musical que inspirou a criação do blog - sinto-me impelido à pedir licença ao leitor que, acostumado com a cor preta e a guitarra distorcida, pode pensar que não o amo mais. Assim como o amo, também amo Rock and Roll. Mas meu coração é grande e também amo diversos outros gêneros musicais. Na verdade amo a música em si, livre de qualquer catálogo. É por isso que, a partir do texto de hoje, qualquer gênero musical será bem-vindo no blog. Este não estará mais restrito à Rock, Blues e Jazz - embora tais estilos continuarão sendo a força motriz dos textos. E sim, Beatles continuará sempre liderando as viagens. Mas vez ou outra dará às caras aqui uma canção de um universo diferente, mas tão poderosa e viajante que logo perceberemos que ela era do mesmo universo - pois só há um universo musical. Isso é apenas uma forma de eliminar a barreira que eu mesmo coloquei sobre canções que me fazem viajar tanto quanto as guitarras do ACDC, mas que nunca foram comentadas aqui. Acredito que o caro leitor que acompanha o blog à tanto tempo não se sentirá ofendido com essa sutil mudança e continuará me presenteando com suas visitas. Para inaugurar o feito, falarei de Orishas. Essa é não só a primeira viagem sobre Hip Hop e música latina como também a primeira viagem em espanhol. Veja só você que avanço. Espero não cometer nenhum erro da língua, afinal meu espanhol é exatamente do mesmo nível de uma iguana. A canção é do disco "El Kilo", de 2005. Segue a letra:




La Calle
(Medina/Romero/Gonzales)

Afuera llueve tápate porque el invierno
Invierno esta vez se te adelanto
La mala suerte te persigue hasta durmiendo
El sombrero se te perdió
Las golondrinas no miran al mar fatal
En lágrimas donde fuiste a parar

De proble en proble, de quita y pone,
De dos cajones que tapar mi cuerpo así
Cuando se calienta aquí
Llega el problema que me inquieta
Ya no hay comida ya no
La policia llego, la ropa sucia quedo,
En este sistema que nos pone así vez
Mucha democracia y esto para que sirve
Si de papeles carezco, si por ser negro apesto
En esta sociedad corrupta, injusta,
Absurda, escucha, di, dilo,
Que te mando yo pli-plo, o no todos mis negros,
O no todos mis negros yo

Te cogió la calle compay
Saca el sombrero
Te cogió la calle compay
Que vas a hacer

Y dice, cuantos mueren de frío
Son desgraciados,
Pasan a tu lado y que vas a hacer
Cuantos son falsos testigos de crímenes,
Suicidios terribles
Castigos y no puede ser
Como se vive en ciudad
Cuéntame el estrés, como te fue esta vez
Como se vive en soledad, te miran,
Te tachan, rechazan y no pasa na'

Te cogió la calle compay
Saca el sombrero
Te cogió la calle compay
Que vas a hacer

Quiero ser yo, dime cuanto valgo
Quiero ser yo, dime a donde voy

Las rachas malas y los años
No tienen pa' cuando parar
Los días son dobles y el tiempo
Se para en el mismo lugar
Las golondrinas no miran al mar fatal
En lágrimas donde fuiste a parar
Solo queda esperar, da igual un día mas

Típico de que me digan testigo
Típico de la miseria en que vivo
Típico de lo que pasa testigo
Típico de lo jodido que he sido

Te cogió la calle compay
Saca el sombrero
Te cogió la calle compay
Que vas a hacer

Solo queda esperar, da igual un día más

La vida a veces 'mano,
tiene cosa que me asombran,
Unos pasan desmadres, otros mueren a la sombra,
De que realidad nos queremos quejar
Tu en esta pincha calle,
Mr Bond y sus desmadres
Para el pobre no hay funerales

Solo queda esperar

Vamos à andança...

Na viagem sobre a canção Tricky Tricky do Lou Bega - mais um dos textos em que fugi completamente do Rock - expliquei que, desde muito tempo atrás, tenho uma paixão secreta pela cultura latina. Gêneros musicais como Mambo, Rumba, Salsa, Cha Cha Cha e afins me transportam mentalmente para sol do Caribe, onde eu passo momentos de alegria sem fim e sinto o gosto da iluminação. Se for verdade - e eu espero que seja - a teoria de que após a morte você vai para o paraíso que você mesmo tem em mente, é para o caribe que eu vou. Nunca estive lá mas sei que é o local. Aliás, nunca precisei estar lá fisicamente para ter essa certeza. Bastam suas músicas. Orishas é um exemplo. A banda cubana faz parte do meu dia-a-dia desde muitos anos atrás, quando um mestre de um antigo emprego me apresentou o excepcional disco "A Lo Cubano". Seu ritmo foi um dos primeiros que conheci capazes de me transferir para o clima da América Central que tanto mexe com meu imaginário. Em La Calle as mais belas qualidades dos Orishas ficam evidentes. Ela começa com o sussurro acelerado de Roldan Gonzales, dono de uma voz bonita e afinadíssima que logo se revela quando ele sobe o tom, dizendo: "As andorinhas não olham para o mar fatal onde você foi parar em lágrimas". Logo após Yotuel Romero assume os vocais num Hip Hop excelente, acompanhado de um ritmo gostoso ao fundo. A base é formada por um violão suave, um riff de teclado e castanholas que permeiam os versos com a perfeição de uma praia paradisíaca. As próximas estrofes, divididas entre Yotuel e o rap mais escrachado de Ruzzo Medina servem para ilustrar com maestria a tal rua do título - provavelmente uma alegoria às ruas de Cuba, repletas de problemas sociais - os mesmos que afligem o Brasil. Tal temática é recorrente nas canções dos Orishas que usam da arte que dominam como uma forma de chamar atenção do mundo para os menos afortunados. Exatamente o que faz o nosso O Rappa e o próprio Pensador. O refrão, um dos momentos mais agradáveis da audição traz a voz lírica de Gonzales de volta, com backing vocals inspiradores e o ritmo dançante sempre presente dizendo: "Te cogió la calle compay saca el sombrero" ("Seguindo pela rua, tire o chapéu"). Mais à frente eles dizem, numa virada interessante: "Típico de testemunhas que dizem, típico da miséria em que eu vivo, típico de testemunhar o que acontece, típico de estar sempre ferrado". Uma das marcas mais interessantes de todas as canções do grupo cubano é a grande variedade de ritmos e viradas numa mesma canção. Se até aqui tivemos pelo menos três mudanças, uma nova aparece quando o vocalista diz, com sua voz suave e os backing vocals acompanhando de perto: "Quero ser eu mesmo, diga-me quanto vale a pena. Quero ser eu mesmo, diga-me aonde ir". Enquanto a canção avança com suas viradas ótimas, balanço viajante e harmonia impecável a música te faz querer se entregar ao som e visitar essas ruas que, mesmo perigosas, guardam uma cultura e experiência únicas. Com essa canção é fácil de perceber que, mesmo na pobreza há beleza. Aliás, ali há uma beleza e singularidade raras de achar, mesmo no mais luxuoso palácio ou na mais vistosa cidade. Ali, nas ruas que servem de quarto para mendigos e de área de lazer para desocupados, há simplicidade e humildade - provenientes de um povo feliz com o que tem, pois não foi possuído e condenado pelo dinheiro. De certa forma eles são mais ricos do que qualquer milionário, pois não perderam sua humanidade em meio às notas e cheques. Tais valores valem um momento de admiração. Essa é mais uma Rua da Fascinação. É de se "tirar el sombrero", como diz a banda. E você tira o chapéu, não por medo, mas por respeito. Se a eles só "resta esperar, afinal, mais um dia" seguindo suas vidas e matando seus leões com as ferramentas que têm à disposição, à nós resta admirar sua coragem e resignação. É por essas e outras que a América Latina ainda me encanta mais que qualquer destino do mundo. E é por canções como essa que resolvi eliminar qualquer barreira musical na minha mente, bem como nesse humilde blog ;)

Nunca ouviu?

Siga pela rua perigosa, porém fascinante. Escute:

Comentários

Fabio CS disse…
Parabéns Felipe pelos 500 textos do blog. Parabéns pelos sentimentos e impressões expressos em suas palavras que possuem um linguajar direto e muito especial, fazendo-nos além de curtir suas impressões gostar cada vez mais de músicas. Fico muito orgulhoso de um grande escritor e um grande estilo de escrever e impressionar. Fabio
Kátia Flávia disse…
Muito linda esta música. Gosto muito da ritmo da música cubana e passei a gostar mais depois do filme Buena Vista. Grandes músicos! Felipe, vc escreve muito bem e é uma delícia de ler seus posts. Parabéns pelo 501! Continue crescendo no número e na vida. Bjs.
Andarilho disse…
Fabio e Katia, muito obrigado pelos comentários. Fico muito feliz que vcs tenham acessado meu blog. Afinal é uma forma de mantermos o contato! Tia, vou atras desse filme pois ainda nao vi. Beijos!!
Unknown disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse…
Como um grande apaixonado pelo grupo Orishas, gostei muito do seu post. Nas minhas viagens pela América do Sul eles estão sempre presentes! Nunca esqueço de todos dançando a base de 'El Kilo' no albergue em Montevideo, muito bom! Parabéns pelo blog.
Andarilho disse…
Ooooopa Amaury! Muito obrigado pelo comentário. Fico feliz que um grande fã de Orishas aprove meu texto. Espero ter essa experiência um dia: todos dançando Orishas em algum bar, hahaha.. Abração!